Postagens populares

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Um incêndio, uma cruz e uma sombra



Júlio Cesar era apaixonado por Cleópatra. Naquele tempo, ele não reinava sozinho, era membro do primeiro Triunvirato, dividindo o poder com Marco Tulio e Pompeu, seu inimigo mais odiado. Em sua guerra civil pelo poder, Júlio perseguiu Pompeu até o Egito, onde houvera obtido a proteção e o apoio militar de Cleópatra, então irmã e esposa do faraó Ptolomeu XIII, bem mais jovem que ela. Cesar derrota Pompeu, recebendo sua cabeça em uma bandeja, juntamente com seu anel. Conta o filosofo Plutarco que ele chorou diante dos restos do inimigo derrotado. E ele conta também o resto da estória.

Cleópatra então, desejosa do poder, marca um encontro sub-reptício com Cesar, para negociar o futuro do país. Diante de sua famosa beleza, ele cai de amores e determina que fosse ela a responsável pelo regime. O desfecho do enredo se dá em Alexandria, a maior cidade do planeta até então: Ptolomeu se afoga tentando fugir, seus tutores são todos mortos, à exceção de um que tenta fugir para obter socorro. E Júlio Cesar ordena que todos os barcos sejam incendiados para impedir sua fuga pelo mar.

Acontece que o fogo atinge o píer. Do píer se alastra por todo o porto. E finalmente consome a Grande Biblioteca de Alexandria. Fundada no século III A.C. ela não era “apenas” a maior e mais completa biblioteca do mundo com seu um milhão de livros catalogados. Era o maior instituto de investigação da antiguidade clássica, dedicado ao estudo de todas as coisas. Foi o primeiro dos grandes golpes que levariam a biblioteca à ruina. Como o levante dos cristãos contra Hepátia, única mulher a dirigir a instituição, Astrônoma, Matemática, mas, infelizmente (?), Pagã. Ela provavelmente foi a última bibliotecária.

A Biblioteca de Alexandria tinha um observatório astronômico, laboratório de anatomia, exemplares de animais de diversas partes do mundo, e recintos destinados a cada ciência praticada na época. E tinha livros! Emissários eram enviados ao mundo para comprar bibliotecas inteiras e de todos que entravam na cidade a guarda confiscava todos os livros portados que eram copiados e depois devolvidos. Há citações mencionando livros de Erástones, um dos primeiros diretores, versado em varias ciências e que foi o primeiro a notar que a terra era esférica, através de uma observação simples e genial. Havia Herófilo, médico fundador do Método Científico, que deduziu que o pensamento estava no cérebro e não no coração. E conta-se de um livro de Aristarco, Astrônomo que foi o primeiro (realmente) a perceber que a Terra não era o centro do universo, como a Igreja postulou pelo milênio seguinte a custa de coação e violência. Ele não apenas percebeu que a terra girava em torno do sol, como conseguiu calcular as distancias (com erros, naturalmente) entre os astros principais e deduzir que as outras estrelas estavam locadas a distancias gigantescas. Quase dois mil anos antes de Kepler.

Se os conhecimentos reunidos em Alexandria tivessem sido aproveitados pelas gerações seguintes de pensadores, ao invés de aguardar séculos pelos historiadores modernos, em que nível tecnológico estaria nossa civilização? Impossível saber. E mesmo esta especulação é irrelevante, de certo modo, porque a destruição da Grande Biblioteca, sete séculos após sua fundação, coincide mais ou menos com a extinção dos pensadores na linha de tempo da história ocidental. É o fim de uma era de valorização do conhecimento para a ascensão de uma longa era de domínio da religião. É o fim do pensamento livre, para dar lugar aos dogmas oficiais. Uma era de guerras, degradação cultural, retrocesso, ignorância, superstições, disputas inúteis e violência que culmina na Idade Média, a chamada “Idade das Trevas”.

Apesar de nosso avanço, estamos muito atrasados. O Renascimento do século 17, com o retorno da liberdade intelectual e do questionamento saldável, demorou demais a chegar. Hoje já mapeamos bilhões de anos luz do Universo e buscamos pela última das partículas que compõem o átomo (ou não será a última?). Conhecemos mecanismos quânticos que explicam alguns dos mais sutis comportamentos dos seres vivos e encontramos planetas capazes de abrigar vida a centenas de bilhões de quilômetros. Mas e se o Renascimento tivesse vindo 200 ou 500 anos antes? E se a Grande Biblioteca não tivesse sido queimada? E se a religião não tivesse perseguido e subjugando a inteligência do Homem? O que saberíamos hoje? Que doenças estariam curadas, que mundos conheceríamos, como seria nossa relação com o meio ambiente, como nos comunicaríamos...?

O mais triste é perceber que o Renascimento ainda não chegou por completo. Uma enorme parcela da sociedade vive nas trevas, algumas pessoas cerceadas por governos totalitários, mas outras por livre e espontânea vontade! Estas sim são dignas de preocupação. Muitas ainda fazem guerra para saber qual deus é o mais poderoso e muitas bibliotecas são queimadas, mesmo que metaforicamente, pelo mundo afora. Até hoje o pensamento é censurado pela superstição, pelo medo e pela ignorância. Temos que remover logo as insigneas, as bandeiras, as cruzes e luas crescentes que insitem em eclipsar o sol de nossa inteligência.

Nenhum comentário:

Postar um comentário